O vento cortas os seres pelo meio,
Só um desejo de nitidez ampara o mundo…
Faz sol. Fez chuva. E a ventania
Esparrama os trombones das nuvens no azul.
(…) Mário de Andrade,
Momento (abril de 1937)
Enfim, aconteceu maio há pouco quando eu fui olhar lá para fora e percebi aquele cenário esbranquiçado. É outono por aqui segundo o calendário, mas eu confesso que ainda penso nas cores da primavera quando penso em maio que pra mim segue sendo o mês das trovoadas que irrompe o céu da minha mente com seus versos, palavras tantas, histórias muitas, silêncios máximos, vontades mínimas e prazos.
E quando eu falo em trovoadas, não falo apenas das que acontecem nos céus, entre nuvens. Falo também daquelas que irrompem em meu íntimo, fazendo ferver o sangue – deixando inquieta a pele, a mente e a alma…
Maio me leva para dentro de mim, por isso digo com frequência que é tempo de “sentir maio”…
Dias de ficar mais tempo na cama olhando para o branco do teto confeccionando notas mentais. Taças de vinho. Xícaras de chá. Envelopes. Livros de Jane Austen. Versos de Fernando Pessoa. Diálogos lentos em mesas de café. Idas às livrarias. Bancos de praças…
Ainda não escolhi os livros que irão comigo para dentro dos dias de maio, mas já sei, desde já como serão os dias de maio, a começar por hoje: uma xícara de chá. Um passeio pelo bairro. Versos de Campos e as linhas de meu diário para o qual dei o nome de “desenhando sombras no que resta da noite” que por enquanto é apenas um pequeno conjunto de rascunhos escritos ao longo dos últimos meses. Tudo folha solta, sem orientação alguma dizendo coisas minhas…
Eu tenho feito isso nos últimos tempos: escrito sem a preocupação de fazer sentido. Orientar-se. Gostei da proposta que me foi feita durante as aulas na USP. Escrever apenas, sem o compromisso do olhar, do sentir alheio. Apenas para mim. E depois que tudo se acomoda, seja numa gaveta ou num baú – eu vou até lá, no meio de uma tarde qualquer e me esparramo. Pronto. É a vez de ser o olhar alheio…
Enfim, maio me pede dias inteiros. Metáforas longas – me deixa a deriva e envia um barco para me trazer para a terra firme. É realidade. Imaginário. Ponte entre mundos. É tudo isso e também é a certeza de que serão dias curtos – noites longas. Algumas horas pela metade. Outras inteiras. Serei eu à sombra. O outro junto a mim. O cão com seu olhar em movimento. Os livros pelos cantos da casa. O corpo junto ao lençol e a certeza da monotonia.
Eu sou uma pessoa monótona e que gosta de ser assim… Sou sozinha também. Sou esquisita. Diferente. Gosto da noite. Da parede branca. Das sombras e da mesa na qual vou espalhando meus caminhos. Minha mesa tem esquinas, ruas, calçadas, portões e um calendário imaginário onde a palavra maio diz com sua voz aveludada certos versos de Eliot que eu sei desde sempre são para uma vida inteira…
(…)
Ninguém chega a ser um nesta cidade,
As pombas se agarram nos arranha-céus, faz chuva.
Faz frio. E faz angústia… É este vento violento
Que arrebenta dos grotões da terra humana
Exigindo céu, paz e alguma primavera.
Mário de Andrade,
Momento (abril de 1937)