Com a visita das princesas Luana e Nina tive mais tempo de saber e ver as coisas da Fabi,
quando ela me mostrou esse texto ricamente  escrito pela jornalista Cláudia Rodrigues; eu na hora perguntei se poderia compartilhar essa história.
Fiquei pensando no título, sorte e merecimento… Eu tive a sorte e merecimento de estar em Fortaleza para o chá de bebê de Nina e nestes ultimos dias de recebê-las aqui em casa. Vindas de longe com as dificuldades de transportar duas pequenas na Chuvitiba, opsss em Curitiba.  para deleite de quem gosta de bons textos para ler, ai está: O relato do parto de Nina no traçar das letras de Claudia Rodrigues…

 

 

 

 

     Por Cláudia Rodrigues

 

Tami
e eu sempre brincamos sobre o sentido das coisas serem por sorte ou
merecimento e quase sempre a conclusão é que são 50% a 50%. De alguma
forma foi muita sorte para mim Fabiana Higa parir na madrugada de sexta
para sábado, ter entrado em TP assim que o avião em que eu estava
aterrissou no aeroporto Bento Martins, em Fortaleza. O merecimento já
faz parte do sagrado, mas intuo que mereci. Havia chegado fazia pouco
mais de uma hora, ainda calçando botas e uma fina blusa de manga
comprida, Kelly e eu às voltas pelo centro da cidade a fim de localizar
um material indispensável ao Inscrições Corporais e que me recuso a
carregar: papel pardo que meça mais de 1,50cm de largura. Kelly
preocupada com o horário, já vestida para dar sua aula na faculdade de
Direito, quando Fabiana ligou convicta de que estava em TP e não mais em
pródromos. Começamos a rir sobre a coincidência, Kelly passou o
telefone para mim. Fabiana estava calma, mas certa de que era TP,
contrações de cinco em cinco e sim, ela queria que eu fosse, afinal
vínhamos conversando por skype nos últimos meses ocasionalmente e nas
últimas semanas mais constantemente. Fabiana engravidou logo depois de
12 de dezembro, por coincidência após o workshop Gravidez, Parto &
Simbiose e nos últimos dias, já inscrita para o Inscrições Corporais,
nutria a idéia de que Nina esperaria o workshop para nascer só depois.
Brinquei com ela que como estava “pronta” poderia fazer os exercícios
mais puxados, não havia risco de parto prematuro. Nossa fantasia,
aparentemente, era um encontro no workshop, mas de qualquer maneira eu
pensava em visitar Fabiana caso Nina nascesse antes do dia 18. O que não
imaginamos jamais foi que Nina nos reuniria para seu nascimento. Essa
foi a única hipótese que não nos ocorreu.
Quando
Kelly e eu conseguimos chegar à casa de Fabiana , por volta das 20,30h,
Bárbara, a obstetra mais parteira de Fortaleza, já estava lá com seu
rosto luminoso, seu corpo leve, ágil, de quem corre vários quilômetros
por dia, assim como Socorro, amiga de Fabiana, militante e doula,
estreante na prática a presenciar seu primeiro parto. Luana, filhinha de
dois anos de Fabi, estava elétrica sentindo o movimento e inicialmente
só aceitava a tia Socorro ou o pai, Rodrigo. Depois de algum tempo
aceitou a mim também, mas esteve difícil para a pequena separar-se da
mãe para dormir. Fomos revezando com Rodrigo, que era a cia favorita da
mãe e da filha e que nunca, em nenhum momento, negou seu total
investimento emocional a qualquer delas, mesmo não podendo virar
dois.Fabiana, apesar de já estar com dilatação quase total, conseguia
relaxar completamente mesmo durante as contrações sempre vocalizando com
suavidade na expiração. Como ela aceitou minha presença ofereci um
exercício de respiração e implantação dos pés a fim de intensificar o
processo. Ela aceitou e percebeu que deu certo. Certo demais, dolorido
demais. Ela voltou a respirar mais contidamente, mas não era uma
contenção do tipo que trava, ela nunca deixava de vocalizar na expiração
e sempre, durante todo o TP encontrou em Rodrigo amparo para soltar a
pelve. Nunca espremeu-se, nunca apertou a pelve e nem elevou os ombros
ou arregalou os olhos. Para regular o medo desintensificava a respiração
e com isso conseguia atenuar a sensação das contrações, mas sem parar o
processo, Nina estava descendo, a cada ausculta estava mais e mais
baixa.Começou a avançar a noite e o cansaço tomou conta da pequena Luana, já
não servia mais divertir-se com tia Socorro e mesmo com Rodrigo estava
sensível pedindo pela mãe. Fabiana tentou segurá-la entre uma contração e
outra, mas isso não poderia, de qualquer maneira, continuar noite
adentro.

Finalmente Fabiana
decidiu chamar Aninha que a ajuda nos afazeres domésticos e nos cuidados
com Luana. Rodrigo veio resolver com ela, alcançar o telefone, e fui
para o lugar dele na cama com Luana; ensinou-me a colocar a mão nas
costinhas dela, que isso a manteria serena. Deu certo, adormeci junto.
Acordei com Aninha me olhando a dizer que estava ali para ficar com
Luana.
Fabiana
estava saindo da água com muito frio. Um daqueles momentos difíceis em
que toda mulher quer esquecer que está em TP, que se meteu nessa
encrenca. Ajudei a secá-la, trocar a roupa, as meninas trouxeram uma
camiseta quente, cobrimos seu corpo com uma colcha e então estava assim
um pouco mais confortável: pronto Fabiana, você tem o direito de
esquecer que está em TP, curta esse calorzinho, beba essa água, vamos
deixar tudo parar, o mundo parar, nem que seja por uns instantes.

Bárbara,
Kelly, Socorro e eu ficamos na varanda e deixamos Rodrigo e Fabiana no
sofá. Alguns minutos depois eles estavam em pé, Fabiana numa sábia
posição pendurando-se nele de maneira a soltar mais a pelve. Que
intuição, que conhecimento do próprio corpo! Diante da dor das
contrações, ela buscava alívio soltando a pelve. Melhor impossível,
mesmo quando ela desintensificava a respiração, apesar de eu ver ali um
esticamento do processo, era tão nítido que atenuava a dor e então ela
me olhou e disse com todas as letras que não queria aumentar a dor e nem
“cavar” mais contrações. Todas rimos. O clima alegre era constante,
Bárbara fazendo café, depois assaltamos a geladeira incentivadas por
Fabiana. E tivemos as broncas! Fabiana não queria que a gente se
divertisse demais a ponto de desconcentrá-la e vez por outra, fazia:
tschshsh, mas um tschschs bem forte e ficávamos todas em silêncio. Ela
não queria música, nem barulho excessivo, ela mandava na gente, em todos
nós e nós corríamos para obedecer àquela pessoa extremamente doce, que
gemia entregue com doçura a cada contração e que em nenhum momento
perdeu a conexão com seu corpo. Nem mesmo segurando Luana entre uma
contração e outra, nem mesmo quando falou com Aninha ao telefone: “venha Aninha, por favor, a Luana está precisando de você aqui agora”.
Se alguma parturiente pode ser chamada de empoderada, essa palavra
esquisita tão utilizada pela militância, essa mulher é Fabiana Higa.
E
aí, por volta das 2h estávamos lá, depois de uma ausculta na banqueta,
tudo perfeito, dilatação total, bolsa ainda íntegra, Bárbara pergunta
sobre o desejo de expulsar, Fabiana diz que não tem puxos, que não vai
fazer força porque não vieram os puxos. Bárbara vai esperar no sofá lá
atrás discretamente, pacientemente, Socorro e eu na parede ao lado,
Kelly preparando a pimenta para o chá. Fabiana estava respirando muito
curto para virem as expulsivas, sugeri a ela ampliar a respiração, ela
aceitou, aceitou que eu me aproximasse, fui a seus pés, coloquei-os em
posição mais implantada, ela voltava a respirar mais curto, eu insistia
com o máximo de doçura que me era possível, ninguém merece uma vaca
dizendo como devemos respirar nos minutos finais, mas para mim estava
claro que os puxos não vinham porque a respiração estava curta. Ela
encarou e depois de três respiradas bem cavadas veio o primeiro puxo e
pelo som que ela fez Bárbara logo percebeu e se aproximou, assim como
Kelly. Continuei incentivando a respiração profunda, Bárbara mostrou
algo técnico para Kelly com a luzinha (não entendi bem) Fabiana também
não perguntou o que era. Elas falaram que estava tudo bem, Bárbara
sugeriu romper a bolsa, Fabiana pediu para esperar a contração passar,
Kelly ofereceu o chá, ela bebeu dois goles, eu disse que o bebê estava
vindo, que ela continuasse respirando, que agora faltava pouco. Fabiana
falou que parecia que não ia sair, nós sorrimos, pedi que continuasse
respirando fundo, sem medo; ela lembrava e respirava de novo
profundamente e vinha outra expulsiva, mas não forte o bastante. E então
Bárbara rompeu a bolsa e muito rapidamente veio uma contração expulsiva
que emendou-se com outra e Nina começou a surgir. Fabiana pediu pano
morno, pano, pano!
Kelly trouxe,
Bárbara sustentou a cabecinha e o corpo veio rapidamente. E ali estavam
os três emocionados. Era nossa hora de dar uma sumida para a varanda
para que eles curtissem a vigorosa filhota. Um parto natural sem
laceração! Hoje ela falou comigo e disse que está de mini-short e com
leite a perder de vista.
Lá fora a
noite morna do Nordeste, sob o suave balanço das folhas de uma
imigrante chinesa chamada Nim, estava estrelada. Para quem vem de um fim
de inverno no RS, esse tipo de sensação, de poder colocar os pés no
chão sentindo apenas calor, nada mais do que calor, já é o paraíso.
Depois
de todas aquelas emoções, daquela honraria de poder acompanhar um
nascimento é até para cética crer em Deus ou pelo menos em humanos mais
humanizados: Nina, muitísimo grata, existem muito mais mistérios do
sagrado que coincidências na tua chegada; Fabiana, gratidão eterna a
você, por sua confiança e abertura num momento tão íntimo para uma quase
desconhecida. Luana, nunca esquecerei que você quando acordou após o
parto para comemorar a chegada da Nina, me chamou de tia Cláudia, você
foi demais naquele momento em que sentiu que o bicho estava pegando e
mandou seu pai te deixar na cama e ir para a sala cuidar da mamãe, foi
muito papo firme, a melhor amiga da mãe e da irmã, a primogênita
assumindo seu lugar no clã. Rodrigo, você é o cara, você é o cara, você é
o cara. Quantos homens nesse mundo são capazes de sensibilizar-se
assim, de ter a casa invadida por um bando de mulheres, de conseguirem
se sair bem sendo tão requisitados emocional e fisicamente como você?
Socorro
nós fizemos uma bela dupla de doulas sobrantes, como você nos apelidou,
e fomos até úteis na medida do possível. Lembra daquele momento ali
acocoradas na parede? Parecia que nós é que íamos parir! Adorei os
momentos de intimidade com você.
Bárbara
você tem a força, tem a luz. Num primeiro momento parece que é pelos
olhos, pela loirice germânica, pelo leve sotaque de estrangeira. Depois
parece que é pela elegância, a suavidade, a leveza do seu corpo, mas é
algo além, é arte, você é artista na profissão de obstetra. E o que era
seu rosto normal, igualmente suave no dia seguinte no workshop? Fiquei
tão grata por você ter ido, afinal havia passado a noite em claro e tem
os filhos crescidos, já longe da fase que estudamos no Inscrições.
Fortaleza que te segure e te assegure toda prosperidade que mereces.
Kelly,
muito obrigada por tudo, pelo teu sorriso, as trapalhadas de perder as
chaves erradas nas horas certas, as questões todas, os papos
filosóficos, o seu lugar impecável de anfitriã e saiba que quanto mais
você acha que vai surpreender para o mal, mais admiro você, mais você me
surpreende para o bem.
Com
muito amor e por partes, logo trarei as novidades do workshop. Sim,
ocitocina funciona como Reativan (sic) no dia seguinte. Não deixei nem o
povo lanchar!
“A humanização do nascimento não representa um retorno romântico ao
passado, nem uma desvalorização da tecnologia. Em vez disso, oferece uma
via ecológica e sustentável para o futuro”
(Ricardo Herbert Jones)